O toque de Deus nos meus cabelos.
Bem sei que Deus não tem mãos, não tem dedos e ainda por cima, quando escreve, escreve direito por linhas tortas, e por mais que as minhas sejam sinuosas a sua escrita jamais será perigosa, jamais conduzirá acidentes e privações. Deus só poderá verbo, só poderá sopro, Espírito.
Por conseguinte, e recorrendo à trinitária possibilidade da incarnação, venho lhe propor a si, Deus, que existe ou que não existe, que me toque em mim, intermediado pelo seu mais tresmalhado carneiro, o brandaniano “pobre de mim”.
Eu sei que a escolha não é a melhor. Aliás, até incorro na via perifrástica: no dia do Senhor, da Casa do Senhor, recorri ao dito carneiro tresmalhado que teima em não soltar a vedação dos meus sonhos e deixar-me cair nesse sono divino, na mão direita de Deus, entre a vigília do poema e da visão, um amor puro e desinteressado, quietista, e por isso, mesmo, segundo a bula de Inocêncio XI Coelestis Pastor, inquietante.
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Inocêncio XI
Como já deve saber, graças à sua omnisciência, que as tentativas dos meus cabelos serem tocadas, ainda que intermediariamente, por si, foram goradas. Eu, por mim própria, pelo meu amor próprio, alma, espírito, pernas e seios, ancas e dedos mindinhos, já realmente me houvera contentado (ou habituado) a não ser tocada por si, e jamais eu própria, o meu amor próprio, a minha alma, espírito, pernas, seios ancas e dedos mindinhos, permitiria tal contestação.
No entanto, os meus cabelos – outorgantes destas tristes e infiéis cruzadas – persistem em reclamar: que nós (cabelos meus) sejamos tocados por si, por intermédio dele, o carneiro tresmalhado.
Que se ratifique: não sou eu, são os meus cabelos.
Confesso até que toda a minha una, dúbia, trina pessoa – excepto os meus cabelos – começa a ficar ligeiramente indisposta
1) quer com a ausência divina (intermediada)
2) quer com o presença do desejo.
A declarante chegou, ao extremo de, no dia de Senhor, 6 de Setembro, dia dos cabeleireiros e do Profeta Zacarias, cortar os seus próprios cabelos, pintar os olhos de ferrugem e pedir ao resto do mundo que a tocassem. E eles disseram: "E “olharão para mim, a quem trespassaram.” (Za12,10).
Ninguém a tocou, e se a tocaram não foi nos poucos cabelos que nela restaram.
Pelo acima referenciado, e com isto termino a minha demanda, oh-Deus-que-poderás-até-nem-existir: toca-me nos cabelos!
Se é aquele o intermediário, ele que se apresse a chegar aos meus cabelos, ou então Deus que não existes mas tudo podes, manda-me outro, um carneiro sem dedos, sem medos, um viaduto aberto onde a estrada começa, sem circulares internas ou vias derramadas. Manda-me um viático- viaduto- via para largar os cabelos.
Eu, exceptuando os meus cabelos, desejo imperiosamente largar a minha língua, a que Deus me deu, para a outra, a que ganhei ao mar, e escrever coisas impossíveis. Em vez disso, aqui estou, com a minha língua de fora, a proferir palavras que não entendo, enquanto os segredos dos diques rebentam na minha língua cortada pelo fio desses cabelos.
Aguardando atenciosamente a sua resposta, defiro-me com as maiores saudações, saudades e salvações – para si e para toda a sua criação.
A sua infiel,
Joana
1 comentário:
bom, ali o sete do dez.
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