Preciso de Flores!

Estão guardadas na Quasi


sábado, 31 de outubro de 2009

Pedro, lembrando Inês

ATÉ AO FIM

Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.


Nuno Júdice in Pedro lembrado Inês

domingo, 25 de outubro de 2009

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

ascenseur pour l'echafaud

Fiquei presa no elevador durante um hora. Entre dois andares. E apercebi-me que aquilo não era metáfora.
Mesmo quando o elevador finalmente desceu, até ao -2, e eu subi, de regresso, ao último andar, continuava presa entre dois andares.


segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Aviso `a navegação

Se em algum tempo se achar este livrinho na mão de
pessoas alegres, não o leiam, que, porventura,
parecendo-lhe que seus casos serão mudaveis, como os
aqui contados, o seu prazer lhe será menos prazer. Isto,
onde eu estivesse, me doeria, porque assaz bastava eu
nascer para minhas mágoas, quanto mais ainda para as
d'outrem. Os tristes o poderão lêr: mas ahi não os houve
mais, homens, depois que nas mulheres houve piedade;
mulheres, sim, porque sempre nos homens houve
desamor: mas para élas não o faço eu, pois que o seu mal
é tamanho que se não póde confortar com outro nenhum.
Para as mais entristecer, sem-razão seria querer eu que o
lessem élas; antes lhes peço muito que fujam d'êle e de
todas as cousas de tristeza, que, ainda com isto, poucos
serão os dias que hão de poder ser ledas,--porque assim
está ordenado pela desventura com que élas nascem.
Para uma só pessoa podia êle ser; mas d'esta não soube
eu mais parte, depois que as suas desditas, e as minhas,
o levaram para longes terras estranhas, onde bem sei eu
que, vivo ou morto, o possue a terra sem prazer nenhum.
Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tam longe?
Vós comigo, e eu convosco, sós, sabiamos suportar
nossos grandes desgostos, e tam pequenos para os de
depois! A vós, contava eu tudo. Como vós vos fostes, tudo
se tornou tristeza; nem parece senão que estava
espreitando já que vos fosseis. E para que tudo mais me
magoasse, nem tam sómente me foi deixado, em vossa
partida, o conforto de saber para que parte da terra ieis,
porque descansariam os meus olhos em levarem para lá a
vista!




Tudo me foi tirado no meu mal; remedio nem conforto,
nenhum houve ahi. Para morrer mais depressa, me pudera
isto aproveitar; mas, para isso, não me aproveitou. Ainda
convosco usou a vossa desventura algum modo de
piedade (dos que não costuma ter com nenhuma pessoa)
em vos alongar da vista d'esta terra; pois que, se para não
sentirdes mágoas não havia remedio, para as não
ouvirdes vo-lo deu. Coitada de mim, que estou falando, e
não vejo eu agora que leva o vento as minhas palavras, e
que me não póde ouvir a quem eu falo! Bem sei eu que
não era para isto a que me agora quero pôr; que o
escrever alguma cousa pede muito repouso; e a mim as
minhas mágoas ora me levam para um cabo, ora para
outro; trazem-me assim, que me é forçoso tomar as
palavras que me élas dão, porque não sou tam
constrangida a servir o engenho, como a minha dôr.






D'estas culpas me acharão muitas n'este livrinho: mas da
minha ventura foram élas. Ainda que, quem me manda a
mim olhar por culpas, nem por desculpas?
O livro ha de ser do que vae escrito n'êle. Das tristezas
não se pode contar nada ordenadamente, porque
desordenadamente acontecem élas. Tambem, por outra
parte, não se me dá nada que o não leia ninguem; que eu
não no faço senão para um só, ou para nenhum; pois
d'êle, como disse, não sei novas, tanto ha.
Mas, se ainda me está guardado, para me ser em algum
tempo outorgado, que este pequeno penhor de meus
longos suspiros vá ante os seus olhos, muitas outras
cousas desejo, mas esta me seria assaz.


Bernardim Ribeiro, Menina e Moça

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Hidráulica

Hidráulica

Miguel decidiu utilizar um condutor
de fluidos para observar a hidroestática
que reage das pressões exercidas
sob os fluidos em repouso.

apercebeu-se então que
a atmosfera era em nada semelhante
ao que acontece quando se submete o mesmo
jacto de uma estância termal

e
mais espantoso ainda
verificou serem as águas termais capazes de
adivinhar o pensamento mansamente masculino
pois só assim se explica a trágica
turbulência da pressão

apenas por ter passado pelos dedos gretados
de Miguel a hipótese de estagnar
um dos jactos.

entende-se melhor agora a insistência
de alguns ressaltos hidráulicos permentes
nos avisos

«É proibido o contacto poético»

(resposta `a Botânica de Miguel Manso)

sábado, 10 de outubro de 2009

Incarnação

Nunca acreditei tanto na incarnação como agora.
Bloqueio e desbloqueio o meu contacto, a infusão.
A ténue linha entre a carne e o sangue.
Sou terrivemente católica sem Deus.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Agnosticismo

Descobri um novo prazer
ou técnica de sobrevivência:
bloqueei no meu e-mail
o nome de quem amo.
Assim nunca saberei
se ele existe ou não existe
se ele está ou não está
presente na minha vida.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Declaração de Imposto a Deus (ou Oração)

Venho por este modo informá-lo/a, não obstante duvidar da sua existência e persistir nessa dúvida debruçada nos mesmos livros que em si teimam crer e descrer, comitantemente – como disse, existindo ou não, venho informá-lo/a que desejo ser tocada por si. Repito. Na sua existência ou inexistência. Já não sou picuínhas.
O toque de Deus nos meus cabelos.

Bem sei que Deus não tem mãos, não tem dedos e ainda por cima, quando escreve, escreve direito por linhas tortas, e por mais que as minhas sejam sinuosas a sua escrita jamais será perigosa, jamais conduzirá acidentes e privações. Deus só poderá verbo, só poderá sopro, Espírito.

Por conseguinte, e recorrendo à trinitária possibilidade da incarnação, venho lhe propor a si, Deus, que existe ou que não existe, que me toque em mim, intermediado pelo seu mais tresmalhado carneiro, o brandaniano “pobre de mim”.

Eu sei que a escolha não é a melhor. Aliás, até incorro na via perifrástica: no dia do Senhor, da Casa do Senhor, recorri ao dito carneiro tresmalhado que teima em não soltar a vedação dos meus sonhos e deixar-me cair nesse sono divino, na mão direita de Deus, entre a vigília do poema e da visão, um amor puro e desinteressado, quietista, e por isso, mesmo, segundo a bula de Inocêncio XI Coelestis Pastor, inquietante.



Inocêncio XI


Como já deve saber, graças à sua omnisciência, que as tentativas dos meus cabelos serem tocadas, ainda que intermediariamente, por si, foram goradas. Eu, por mim própria, pelo meu amor próprio, alma, espírito, pernas e seios, ancas e dedos mindinhos, já realmente me houvera contentado (ou habituado) a não ser tocada por si, e jamais eu própria, o meu amor próprio, a minha alma, espírito, pernas, seios ancas e dedos mindinhos, permitiria tal contestação.

No entanto, os meus cabelos – outorgantes destas tristes e infiéis cruzadas – persistem em reclamar: que nós (cabelos meus) sejamos tocados por si, por intermédio dele, o carneiro tresmalhado.

Que se ratifique: não sou eu, são os meus cabelos.

Confesso até que toda a minha una, dúbia, trina pessoa – excepto os meus cabelos – começa a ficar ligeiramente indisposta

1) quer com a ausência divina (intermediada)
2) quer com o presença do desejo.

A declarante chegou, ao extremo de, no dia de Senhor, 6 de Setembro, dia dos cabeleireiros e do Profeta Zacarias, cortar os seus próprios cabelos, pintar os olhos de ferrugem e pedir ao resto do mundo que a tocassem. E eles disseram: "E “olharão para mim, a quem trespassaram.” (Za12,10).

Ninguém a tocou, e se a tocaram não foi nos poucos cabelos que nela restaram.
Pelo acima referenciado, e com isto termino a minha demanda, oh-Deus-que-poderás-até-nem-existir: toca-me nos cabelos!

Se é aquele o intermediário, ele que se apresse a chegar aos meus cabelos, ou então Deus que não existes mas tudo podes, manda-me outro, um carneiro sem dedos, sem medos, um viaduto aberto onde a estrada começa, sem circulares internas ou vias derramadas. Manda-me um viático- viaduto- via para largar os cabelos.

Eu, exceptuando os meus cabelos, desejo imperiosamente largar a minha língua, a que Deus me deu, para a outra, a que ganhei ao mar, e escrever coisas impossíveis. Em vez disso, aqui estou, com a minha língua de fora, a proferir palavras que não entendo, enquanto os segredos dos diques rebentam na minha língua cortada pelo fio desses cabelos.

Aguardando atenciosamente a sua resposta, defiro-me com as maiores saudações, saudades e salvações – para si e para toda a sua criação.


A sua infiel,

Joana

Emparedada/Uit de Muur

Emparedada/Uit de Muur
Um ciclo de poemas portugueses e neerlandeses

Klompen / Socos


Klompen/ Socos

Klompen/ Socos: tamancos, chinelas de pau, tb. acto de toque fisico, agressivo, da /tua, minha/ mao na / minha, tua/ face

Klompen


Gostava de te dizer como são os meus passos que me afastam de ti.
Como não vivo para ti, nem escrevo para ti.

Como não penso no meu amor, nem te amo em pensamento.

Como não te vejo nos lugares onde nunca estivemos juntos.

Como tu não me pisas quando me obrigas a seguir os teus passos,
ou como não me calcas quando descalças os pés às leonores
que bebem da tua fonte.

Como caminho firme e confiante pelos prados holandeses, entre as vacas e a lama,
e me afasto cada vez mais de ti.

Como os meus passos se afastam dos teus passos, correndo para longe, longe,
esperando que o mundo seja realmente redondo, e não plano,
e possa, um dia, chegar às tuas costas, tapar os teus olhos e dizer-te
mijn thuisland is niet meer mijn taal.


Socos


Ik wilde je zeggen hoe mijn stappen zijn die mij van je verwijderen.

Hoe ik niet leef voor jou, niet eens schrijf voor jou.

Hoe ik niet denk aan mijn liefde en je evenmin bemin in gedachten.

Hoe ik je niet zie op de plaatsen waar we nooit samen waren.

Hoe je me niet vertrapt wanneer je me dwingt je stappen te volgen,
of hoe je me niet plet wanneer je de schoenen uittrekt
van de leonoors die drinken uit jouw bron.

Hoe ik ferm en vol vertrouwen door de Nederlandse weiden loop,
tussen koeien en modder, en me steeds verder van je verwijder.

Hoe mijn stappen zich verwijderen van jouw stappen, rennend naar de verre verten,in de hoop dat de wereld werkelijk rond is, en niet plat,
en dat ik op een dag achter je sta, mijn handen op je ogen leg en zeg
a minha pátria já não é a minha língua.


Joana Serrado, Emparedada/ Uit de Muur, Uitgeverij de Passage, 2009, p. 32, 33

A minha pátria não é a minha língua