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terça-feira, 6 de outubro de 2009

Declaração de Imposto a Deus (ou Oração)

Venho por este modo informá-lo/a, não obstante duvidar da sua existência e persistir nessa dúvida debruçada nos mesmos livros que em si teimam crer e descrer, comitantemente – como disse, existindo ou não, venho informá-lo/a que desejo ser tocada por si. Repito. Na sua existência ou inexistência. Já não sou picuínhas.
O toque de Deus nos meus cabelos.

Bem sei que Deus não tem mãos, não tem dedos e ainda por cima, quando escreve, escreve direito por linhas tortas, e por mais que as minhas sejam sinuosas a sua escrita jamais será perigosa, jamais conduzirá acidentes e privações. Deus só poderá verbo, só poderá sopro, Espírito.

Por conseguinte, e recorrendo à trinitária possibilidade da incarnação, venho lhe propor a si, Deus, que existe ou que não existe, que me toque em mim, intermediado pelo seu mais tresmalhado carneiro, o brandaniano “pobre de mim”.

Eu sei que a escolha não é a melhor. Aliás, até incorro na via perifrástica: no dia do Senhor, da Casa do Senhor, recorri ao dito carneiro tresmalhado que teima em não soltar a vedação dos meus sonhos e deixar-me cair nesse sono divino, na mão direita de Deus, entre a vigília do poema e da visão, um amor puro e desinteressado, quietista, e por isso, mesmo, segundo a bula de Inocêncio XI Coelestis Pastor, inquietante.



Inocêncio XI


Como já deve saber, graças à sua omnisciência, que as tentativas dos meus cabelos serem tocadas, ainda que intermediariamente, por si, foram goradas. Eu, por mim própria, pelo meu amor próprio, alma, espírito, pernas e seios, ancas e dedos mindinhos, já realmente me houvera contentado (ou habituado) a não ser tocada por si, e jamais eu própria, o meu amor próprio, a minha alma, espírito, pernas, seios ancas e dedos mindinhos, permitiria tal contestação.

No entanto, os meus cabelos – outorgantes destas tristes e infiéis cruzadas – persistem em reclamar: que nós (cabelos meus) sejamos tocados por si, por intermédio dele, o carneiro tresmalhado.

Que se ratifique: não sou eu, são os meus cabelos.

Confesso até que toda a minha una, dúbia, trina pessoa – excepto os meus cabelos – começa a ficar ligeiramente indisposta

1) quer com a ausência divina (intermediada)
2) quer com o presença do desejo.

A declarante chegou, ao extremo de, no dia de Senhor, 6 de Setembro, dia dos cabeleireiros e do Profeta Zacarias, cortar os seus próprios cabelos, pintar os olhos de ferrugem e pedir ao resto do mundo que a tocassem. E eles disseram: "E “olharão para mim, a quem trespassaram.” (Za12,10).

Ninguém a tocou, e se a tocaram não foi nos poucos cabelos que nela restaram.
Pelo acima referenciado, e com isto termino a minha demanda, oh-Deus-que-poderás-até-nem-existir: toca-me nos cabelos!

Se é aquele o intermediário, ele que se apresse a chegar aos meus cabelos, ou então Deus que não existes mas tudo podes, manda-me outro, um carneiro sem dedos, sem medos, um viaduto aberto onde a estrada começa, sem circulares internas ou vias derramadas. Manda-me um viático- viaduto- via para largar os cabelos.

Eu, exceptuando os meus cabelos, desejo imperiosamente largar a minha língua, a que Deus me deu, para a outra, a que ganhei ao mar, e escrever coisas impossíveis. Em vez disso, aqui estou, com a minha língua de fora, a proferir palavras que não entendo, enquanto os segredos dos diques rebentam na minha língua cortada pelo fio desses cabelos.

Aguardando atenciosamente a sua resposta, defiro-me com as maiores saudações, saudades e salvações – para si e para toda a sua criação.


A sua infiel,

Joana

1 comentário:

bruno disse...

bom, ali o sete do dez.

Emparedada/Uit de Muur

Emparedada/Uit de Muur
Um ciclo de poemas portugueses e neerlandeses

Klompen / Socos


Klompen/ Socos

Klompen/ Socos: tamancos, chinelas de pau, tb. acto de toque fisico, agressivo, da /tua, minha/ mao na / minha, tua/ face

Klompen


Gostava de te dizer como são os meus passos que me afastam de ti.
Como não vivo para ti, nem escrevo para ti.

Como não penso no meu amor, nem te amo em pensamento.

Como não te vejo nos lugares onde nunca estivemos juntos.

Como tu não me pisas quando me obrigas a seguir os teus passos,
ou como não me calcas quando descalças os pés às leonores
que bebem da tua fonte.

Como caminho firme e confiante pelos prados holandeses, entre as vacas e a lama,
e me afasto cada vez mais de ti.

Como os meus passos se afastam dos teus passos, correndo para longe, longe,
esperando que o mundo seja realmente redondo, e não plano,
e possa, um dia, chegar às tuas costas, tapar os teus olhos e dizer-te
mijn thuisland is niet meer mijn taal.


Socos


Ik wilde je zeggen hoe mijn stappen zijn die mij van je verwijderen.

Hoe ik niet leef voor jou, niet eens schrijf voor jou.

Hoe ik niet denk aan mijn liefde en je evenmin bemin in gedachten.

Hoe ik je niet zie op de plaatsen waar we nooit samen waren.

Hoe je me niet vertrapt wanneer je me dwingt je stappen te volgen,
of hoe je me niet plet wanneer je de schoenen uittrekt
van de leonoors die drinken uit jouw bron.

Hoe ik ferm en vol vertrouwen door de Nederlandse weiden loop,
tussen koeien en modder, en me steeds verder van je verwijder.

Hoe mijn stappen zich verwijderen van jouw stappen, rennend naar de verre verten,in de hoop dat de wereld werkelijk rond is, en niet plat,
en dat ik op een dag achter je sta, mijn handen op je ogen leg en zeg
a minha pátria já não é a minha língua.


Joana Serrado, Emparedada/ Uit de Muur, Uitgeverij de Passage, 2009, p. 32, 33

A minha pátria não é a minha língua