Preciso de Flores!

Estão guardadas na Quasi


domingo, 15 de julho de 2007

Do Crime - dubitatio, explanatio sine conclusio

Visitações, ou Poema que se diz Manso



De mansinho, ela entrou a minha filha.



A madrugada entrava como ela, mas não

tão de mansinho. Os pés descalços,

de ruído menor que o meu lápis

e um riso bem maior do que o dos meus versos.



Sentou-se ao meu colo, de mansinho.



O poema invadia como ela, mas não

tão mansamente com esta exigência

tão mansinha. Como um ladrão furtivo,

a minha filha roubou-me a inspiração,

versos quase chegados, quase meus.



E mansamente aqui adormeceu

feliz pelo seu crime.



Ana Luisa Amaral in Poesia Reunida 1990-2005, Vila Nova Famalicão, Quasi Edições, 2005, p.272.





Não sei qual o maior crime, se escrever ou se ler um poema. Ana Luisa Amaral revela-nos outra possibilidade: o crime de interromper o poema. A descontinuidade do poema. A ruptura entre a palavra e o concreto, entre a visão do que pode ser e a carne (da nossa carne) do que existe. O pé descalço que pisa o chão como o lápis risca o papel. Ambos os sons desvastam, estilhaçam a alma. Não sei se o crime maior fora mesmo o da autora: de pegar no crime da mais inocente e mansa culpada, a sua própria carne desse lado do espelho, e retornar novamente à continuidade do poema.



Então penso na P.D. James que me tem velado, mansamente, por este Inverno. Dalgliesh, o poeta detective que ilumina a culpa tanto das vítimas como de seus agressores, ao mesmo tempo em que a transforma na sua própria vida desculpada em poema.



Eis a possível defesa de qualquer criminosa perseguida pela justiça do poema:



I said you're entitled to know what I did. You're not entitled to know what I am. You're neither a priest nor a psychiastrist. My past is my own. I'm not going to get rid of it by making a present to you. [...] You're a writer, aren't you, a poet? It isn´t enough for you to meddle in other people's lives, to get them arrested, to see them sent to prision, their lives broken. You have to understand them, get into their minds, use them as your raw material. But you can't use me. You haven't the right.

P.D. James, The Murder Room, London, Penguin Books, 2003, p. 510.




Mas mesmo assim o poeta sente o Direito por completo na sua mão, na sua tinta para refazer o mundo. E escreve. E as silenciosas testemunhas ocultas-cúmplices: os seus leitores.

3 comentários:

Anónimo disse...

(espaço tão acolhedor como o livro.
voltarei a este canto mais vezes,pois claro.(:)

Joana Serrado disse...

Obrigada pelas tuas palavras, Adriano, pela tua leitura. Vem quando quiseres. Serás sempre bem-vindo

menina tóxica disse...

sou uma silenciosa testemunha oculta-cúmplice :))))

ainda estou a saborear o teu tratado. lindíssimo!!!

Emparedada/Uit de Muur

Emparedada/Uit de Muur
Um ciclo de poemas portugueses e neerlandeses

Klompen / Socos


Klompen/ Socos

Klompen/ Socos: tamancos, chinelas de pau, tb. acto de toque fisico, agressivo, da /tua, minha/ mao na / minha, tua/ face

Klompen


Gostava de te dizer como são os meus passos que me afastam de ti.
Como não vivo para ti, nem escrevo para ti.

Como não penso no meu amor, nem te amo em pensamento.

Como não te vejo nos lugares onde nunca estivemos juntos.

Como tu não me pisas quando me obrigas a seguir os teus passos,
ou como não me calcas quando descalças os pés às leonores
que bebem da tua fonte.

Como caminho firme e confiante pelos prados holandeses, entre as vacas e a lama,
e me afasto cada vez mais de ti.

Como os meus passos se afastam dos teus passos, correndo para longe, longe,
esperando que o mundo seja realmente redondo, e não plano,
e possa, um dia, chegar às tuas costas, tapar os teus olhos e dizer-te
mijn thuisland is niet meer mijn taal.


Socos


Ik wilde je zeggen hoe mijn stappen zijn die mij van je verwijderen.

Hoe ik niet leef voor jou, niet eens schrijf voor jou.

Hoe ik niet denk aan mijn liefde en je evenmin bemin in gedachten.

Hoe ik je niet zie op de plaatsen waar we nooit samen waren.

Hoe je me niet vertrapt wanneer je me dwingt je stappen te volgen,
of hoe je me niet plet wanneer je de schoenen uittrekt
van de leonoors die drinken uit jouw bron.

Hoe ik ferm en vol vertrouwen door de Nederlandse weiden loop,
tussen koeien en modder, en me steeds verder van je verwijder.

Hoe mijn stappen zich verwijderen van jouw stappen, rennend naar de verre verten,in de hoop dat de wereld werkelijk rond is, en niet plat,
en dat ik op een dag achter je sta, mijn handen op je ogen leg en zeg
a minha pátria já não é a minha língua.


Joana Serrado, Emparedada/ Uit de Muur, Uitgeverij de Passage, 2009, p. 32, 33

A minha pátria não é a minha língua